Alaíde Costa canta a dramática sinfonia do desamor em álbum com o repertório menos conhecido de Dalva de Oliveira
Disco ‘Uma estrela para Dalva’ abre os festejos dos 90 anos da artista carioca, plena no canto de sambas-canção embebidos em tristezas e ressentimentos. A...

Disco ‘Uma estrela para Dalva’ abre os festejos dos 90 anos da artista carioca, plena no canto de sambas-canção embebidos em tristezas e ressentimentos. Alaíde Costa (à direita) faz inventário de dores de amores em álbum em que joga luz sobre músicas menos conhecidas do repertório de Dalva de Oliveira (1917 – 1972) Reprodução (Dalva de Oliveira) / Murilo Alvesso (Alaíde Costa) / Montagem g1 ♫ OPINIÃO SOBRE DISCO Título: Uma estrela para Dalva Artista: Alaíde Costa Cotação: ★ ★ ★ ★ ★ ♬ O álbum Uma estrela para Dalva reacende a alma musical de Alaíde Costa sem o hype oportuno de discos recentes que ampliaram a visibilidade da artista carioca com repertório inédito, mas nem sempre afinado com a cantora. Álbum que abre os festejos dos 90 anos da cantora, a serem comemorados em 8 de dezembro, Uma estrela para Dalva é em essência um disco de magoados sambas-canção em que Alaíde faz o inventário de cicatrizes e dores de amores ao dar voz ao repertório de Dalva de Oliveira (5 de maio de 1917 – 30 de agosto de 1972), estrela da era do rádio cujos agudos irradiavam a agonia lancinante do abandono, do ciúme e da traição. É nesse universo aflitivo que as luminosidades de Alaíde Costa e Dalva de Oliveira se afinam neste disco produzido com heroísmo e independência por Thiago Marques Luiz para realizar o desejo da própria Alaíde, amiga de Dalva nos anos 1950 e admiradora de um repertório que conhece a fundo. A propósito, a seleção de repertório – feita pela própria Alaíde com colaborações de Hermínio Bello de Carvalho e Cervantes Sobrinho – contribui para dar relevo ao álbum por extrapolar a seara dos sucessos. Há, claro, músicas conhecidas, caso de Errei, sim (Ataulfo Alves, 1950), revivida por Alaíde com o toque apropriadamente dramático do piano de Antonio Adolfo. Mas há, sobretudo, pérolas raras que saem do baú no canto denso de Alaíde, caso de Tatuado (Klecius Caldas e Armando Cavalcanti, 1957) – samba-canção escolhido acertadamente para abrir o disco, em gravação que junta Alaíde com o toque lapidar do piano de Zé Manoel – porque contabiliza as marcas de dor espalhadas no corpo e na alma de quem sofreu a vida toda por amar sem ser amado na mesma proporção. No mundo a partir de sexta-feira, 9 de maio, em edição da gravadora Deck, Uma estrela para Dalva é álbum vocacionado para Alaíde Costa porque, embora a cantora também seja associada à suavidade da bossa nova, Alaíde é uma intérprete que, a julgar pelo repertório, veio andando sozinha, cheia de mágoa, pelas estradas de um caminho sem fim. Não, ninguém chega a morrer de amor no cancioneiro reabilitado pela cantora ao longo das 17 faixas deste disco longo, mas sem firulas, que junta a intérprete com um grande instrumentista diferente – geralmente um pianista ou um violonista – a cada uma dessas 17 faixas que soam sem erros, unificadas pelo canto e a alma da artista. Só que a morte acontece em vida, corroída pelo ressentimento e o ódio motivados pela traição, assunto de Há um Deus (Lupicínio Rodrigues, 1957), música cantada por Alaíde com o piano de Vitor Araújo. Se Segundo andar (Alvarenga e Ranchinho, 1950) arranha o céu do sofrimento com o moralismo romântico que associa pobreza à felicidade, em gravação que une a cantora com Filó Machado (violão) e Léa Freire (flauta), o samba-canção Bom dia (Herivelto Martins e Aldo Cabral, 1942) cumprimenta a tristeza pela partida sem aviso prévio do ser amado em registro que marca o reencontro de Alaíde com Guinga, grandioso ao violão na gravação que ultrapassa seis minutos e que inclui solo do músico. Nesse mosaico de amores-quase-tragédias como o de Fim de comédia (Ataulfo Alves, 1952), faixa que tem o toque preciso do pianista André Mehmari, paira monstruosa em Teus ciúmes (Lacy Martins e Aldo Cabral, 1935) a sombra de um coração dilacerado pelo sentimento de posse que move o samba-canção em gravação que une a cantora com o pianista Cristovão Bastos. Se o álbum fosse editado em LP (formato ao qual deverá chegar no segundo semestre com 12 das 17 faixas), as dores seriam suavizadas no lado A somente pela oração terna feita por Alaíde com Maria Bethânia em Ave Maria no morro (Herivelto Martins, 1942) e com as sagradas sete cordas do violão de João Camarero. Para além da perfeição artística de Uma estrela para Dalva, é justo elogiar a mixagem de Vitor Farias e a masterização de Fábio Roberto, ambas exemplares e importantes para que o som do disco soasse límpido como o canto de Alaíde Costa e os toques dos músicos. Essa precisão técnica é fundamental para a apreciação de faixas como El dia que me quieras (Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, 1934), standard portenho que Alaíde canta como tango – no (com)passo inventivo do fraseado do piano de Amaro Freitas – com fidelidade ao espírito do registro original, e não na habitual cadência do bolero em que foi transformado o tema argentino. Corpos estranhos na arquitetura camerística do disco, as programações inseridas por Yuri Queiroga no registro do samba Sebastiana da Silva (Rômulo Paes, 1951) quebram o clima dramático em gravação na qual aparece a única guitarra do álbum, tocada por Roberto Menescal na faixa encerrada com sagaz citação vocal da marcha-rancho Máscara negra (Zé Kétti e Pereira Matos, 1967), sucesso da fase crepuscular da carreira de Dalva. Na sequência, o medley com Tudo acabado (J. Piedade e Oswaldo Martins, 1950) e Neste mesmo lugar (Klecius Caldas e Armando Cavalcante, 1956) restabelece o tom dramático do álbum em gravação que traz Roberto Sion ao piano e ao saxofone. Faixa feita com o piano de Itamar Assiere, Estrela do mar (Marino Pinto e Paulo Soledade, 1952) ilumina a total afinidade entre o canto de Alaíde e o repertório de Dalva de Oliveira. Afinidade até óbvia porque, a rigor, o universo musical das duas cantoras é similar. Como Alaíde, poucas cantoras sabem dizer com autenticidade os versos de A grande verdade (Luís Bittencourt e Marlene, 1951), faixa com o violão de Gabriel Deodato e o canto de Edson Cordeiro, hábil na evocação do canto de Dalva em breves e luxuosas intervenções na faixa. Assim como enfatiza o martírio de Distância (Marino Pinto e Mário Rossi, 1953), em gravação com o piano de Gilson Peranzzetta, Alaíde Costa puxa a mágoa do fundo da rede de intrigas que impulsiona Segredo (Herivelto Martins e Marino Pinto, 1947) e Calúnia (Marino Pinto e Paulo Soledade, 1951), músicas reunidas em medley gravado com o pianista Alexandre Vianna. No canto mais fundo dessa rede de infelicidade, o coração palpita desiludido pela dor de Mentira de amor (Lourival Faissal e Gustavo de Carvalho, 1950), música gravada por Alaíde com o piano de José Miguel Wisnik. E, no fim, vem o cessar-fogo amoroso. É quando Alaíde Costa hasteia Bandeira branca (Max Nunes e Laércio Alves, 1969), pedindo paz no compasso dessa marcha lenta e doída em que reaparece o piano de Amaro Freitas, dando o toque dramático que arremata Uma estrela para Dalva. É o fecho esteticamente feliz de álbum em que a luminosidade de Alaíde Costa se encontra com a eternidade de Dalva de Oliveira nesse songbook de valor perene que atravessará o tempo como o testemunho da grandeza dessas intérpretes irmanadas no canto da dramática sinfonia do desamor. Capa do álbum ‘Uma estrela para Dalva’, de Alaíde Costa Murilo Alvesso com arte de Leandro Arraes